Quem conhece Belo Horizonte provavelmente sabe onde é a Rua do Ouro. É uma rua íngreme, de mão única, famosa no bairro Serra, na capital mineira. Quase terminando a rua, existe uma placa de PARE, em um cruzamento, para os motoristas que estão subindo. E uma indicação de que por ali transitam crianças surdas. A placa nunca foi retirada, embora a clínica de oralização de surdos não funcione mais. Nesse local um surdo foi atropelado.
O Felipe Barros, CEO da SignumWeb, frequentava a clínica aos 5 anos de idade… Na tentativa de que fosse oralizado. Ao lado da clínica existia uma mercearia. Um dia, após o fim do atendimento, Felipe saiu da clínica com seu pai e viu um coleguinha sinalizando que tinha ganhado sorvete. Ele então correu para a mercearia, pedindo que o pai comprasse pra ele um picolé. Mas não bastava ganhar. Ele queria mostrar para seu amigo que também tinha a delícia gelada.
Como o seu amiguinho já havia atravessado a rua, Felipe não pensou duas vezes. Sem olhar para os lados, como já havia aprendido, atravessou a rua correndo. A motorista que vinha subindo não observou as placas, não respeitou a sinalização, não reduziu a velocidade. O Felipe foi atropelado, fraturou o fêmur – e o carro passou por cima dos seus aparelhos auditivos, que caíram com o impacto.
O que entristeceu e marcou o fato foi o argumento da mulher, que disse: “Eu buzinei. Não tenho culpa se ele é surdo!”. Uma mãe não escuta isso e fica calada. Perguntei se ela tinha filhos, expliquei que o Felipe, por acaso, tinha nascido ouvinte e contraído a surdez como sequela de uma doença. Também argumentei que ela tinha que respeitar as placas, pois, por não ter culpa da deficiência alheia, ela não tinha o direito de continuar atropelando surdos, cegos e pessoas com baixa mobilidade.
A mulher resistiu em reconhecer a culpa, mas visitou o Felipe no hospital, levando um presentinho. Terminamos liberando-a da obrigação de arcar com os custos do tratamento, já que temos um bom plano de saúde e, também, do pagamento dos aparelhos, já que estavam no seguro. Ainda tenho dúvidas quanto aos efeitos dessa generosidade, se contribuiu para o aprendizado, mais foi assim que aconteceu.
O fato é que fiquei muito mais cuidadosa com Felipe na época, praticamente limitando seu direito de ir e vir. Para favorecer seu aprendizado às vezes permitia que fosse à banca de revista, comprar uma revistinha da Turma da Mônica, que meus filhos amavam. Passei a não deixar que ele fosse sozinho, até o dia em que me perguntou:
– Mãe, só o surdo é atropelado?
Como resistir a esse argumento? Ele terminou reconquistando o seu direito de ir e vir com liberdade, embora eu ficasse vigiando de longe. O surdo quer autonomia, deseja o livre trânsito, em igualdade de condição com qualquer ouvinte. Ambos têm direitos e também estão sujeitos a passar dificuldades.
Afinal, até mesmo quem escuta pode ser atropelado, não é mesmo?